A disciplina é importante em todos os setores da vida, mas não é necessariamente um comportamento rígido e inflexível. O que é então a verdadeira disciplina? Não deixe de ler este texto inédito.
Como todos sabem, viajo sem parar, fazendo palestras por todo o país, assim como os meus colegas de profissão, co-autores deste livro. Mas todos temos também direito a férias, ninguém é de ferro. Por isso, durante um mês por ano eu paro de viajar e… faço uma viagem. Só que dessa vez não é para falar, mas sim para ouvir, ver, aprender, observar, conhecer um pouco mais, renovar as energias e a visão de mundo, reciclando-me para mais um ano de palestras que possam fazer diferença na vida das pessoas que me assistem e das empresas que me honram com seus convites.
Num desses períodos de férias, fui à Índia. Sim, porque não é só o presidente da república e os praticantes de yoga que podem ir conhecer o Taj Mahal; eu também posso. Passeando de riquixá pelas ruas antigas de Nova Delhi, meu guia levou-me a um pagode (nada a ver com samba: pagode é uma espécie de templo) onde havia alguns faquires. Um deles vivia todo o tempo de cabeça para baixo, com as mãos no chão e os pés para o alto, outro exibia uma barba de 5 metros de comprimento, porém o que mais me impressionou foi um que ficava confortavelmente sentado sobre uma cadeira de pregos.
Os pregos pontudos lhe feriam o corpo mas pareciam ser, pela expressão do faquir, uma almofada de cetim. Fiquei ali um bom tempo observando as pessoas que não paravam de chegar para consultá-lo. Ele era uma espécie de oráculo, admirado e respeitado.
Pedi ao meu guia para ajudar como tradutor em uma conversa com ele. O guia me apresentou e o faquir ficou esperando que eu perguntasse alguma coisa.
– O que é preciso para que nossa vida realmente valha a pena? – perguntei.
– Depende – disse-me ele, indagando em seguida: – Como você vive?
– Procuro ser um homem de bem, bom chefe de família, bom profissional, ajudo aos necessitados como posso, transmito mensagens positivas em meu dia-a-dia…
– Você não senta de vez em quando numa cadeira de pregos como esta?
– Ah, isso não – respondi.
– Então, sinto muito, mas desse jeito você só irá para o décimo-nono céu, no máximo.
– Tudo bem, não tem problema – argumentei. – Para mim não faz diferença se vou ao décimo-nono ou ao vigésimo céu. E qual é seu objetivo, com todos esses pregos espetados no corpo?
– Vou para o trigésimo-quinto céu – disse ele.
Meu guia, então, não se conteve e começou a argumentar com ele, sem traduzir-me o que falavam. Depois de um bom tempo de conversa, para minha surpresa o faquir levantou-se e, andando com dificuldade, saiu junto conosco.
Intrigado, perguntei ao guia o que tinha acontecido.
– Disse a ele que esse negócio de querer ir para o trigésimo-quinto céu talvez não passe de uma ambição, de certa forma egoística, pois mais vale ter uma vida honrada como a nossa, trabalhando com afinco, cuidando de sua família e ajudando ao próximo, do que ficar mortificando o corpo com pregos. Então ele acabou concordando em ficar uns tempos em minha casa para viver uma vida normal.
Nos dias seguintes, saí numa excursão por vários pontos daquele enorme e exótico país. Duas semanas depois, procurei o guia para saber das novidades.
– Ah, o faquir? Trouxe-o para casa, fiz com que ele tomasse um banho caprichado, minha mulher lhe serviu bons alimentos, dei-lhe roupas novas e meus amigos lhe ofereceram trabalho. Ele viveu dez dias conosco, confessando que estava se sentindo muito mais feliz do que antes. Mas… sentiu falta do povo que vinha admirá-lo e consultá-lo. E decidiu voltar aos pregos.
***
Quando penso sobre disciplina, costumo lembrar-me dessa história, que na verdade é fictícia. Trata-se de um antigo conto intitulado “Carta de um turco”, escrito por Voltaire, aquele famoso escritor e filósofo da Revolução Francesa, que decidi recontar do meu jeito. É uma metáfora muito interessante sobre os exageros que algumas pessoas cometem com relação à disciplina.
Não há dúvida de que a disciplina é importante em todos os setores da nossa vida – o trabalho, a saúde, a educação, a vida em família, o convívio social, o bem-estar, a política, o esporte e tudo o mais. Sem disciplina em nosso dia-a-dia, não temos como estar preparados para os embates da vida. “Se o caminhante tem as pernas frágeis para tão longo e duro caminho, deve fortalecê-las antes de começar a andar”, diz o Prof. Hermógenes, um mestre do Yoga no Brasil.
O personagem do conto que acabo de narrar buscava exercer a disciplina flagelando o próprio corpo. No outro extremo existem as pessoas que se entregam à gula, à bebida e aos prazeres sensuais, ou aqueles que se deixam enferrujar na vida sedentária e só pensam em trabalho, gastando energia sem praticar exercícios, sem momentos de lazer e de reflexão, sem cuidar da própria saúde. Entre esses dois extremos, o Prof. Hermógenes recomenda o caminho do meio, observando que, seja qual for a religião, é obrigação de todos cuidar bem do próprio corpo, por meio da disciplina que nos fortalece e nos “defende de todos os cansaços, desânimos, preguiças, fossos e fossas”.
Equilíbrio. Este é um ingrediente importante para a disciplina, que não deve cair no exagero ou na rigidez. Basta passarmos numa academia de ginástica para ver isso. Tem gente que fica malhando horas e horas, impondo-se uma disciplina exagerada e um ritmo pesado de exercícios físicos para fazer crescer os músculos, o que a longo prazo pode prejudicar a saúde, apenas por narcisismo.
Aliás, nem precisamos ir à academia para vermos esse tipo de atitude. Nos ambientes de trabalho ainda são muito comuns os exageros em matéria de disciplina. Sabe aquele chefe extremamente rigoroso e centralizador, que não permite que ninguém diga ou faça nada diferente do que ele considera certo? É o famoso matador de idéias, um destruidor da criatividade.
Não precisa ser chefe para ser um maníaco da disciplina. Conheci há tempos um burocrata, escriturário, que era fanático por carimbos. Tornou-se tão exímio e rigoroso no arquivamento dos papéis e principalmente no manejo dos carimbos em sua repartição, que impôs um clima de terror a quem carimbasse errado, sem a carga exata de tinta, ou com pouca pressão em um dos lados, ou torto em relação ao papel. Carimbar de ponta-cabeça ou usar o carimbo errado, para ele, deviam ser crimes passíveis de demissão sumária por justa causa, ou até mesmo prisão perpétua. Em sua cruzada pela carimbagem perfeita, chegou a fazer um minucioso manual do carimbador, que instituiu como lei suprema quando foi nomeado chefe da seção. Reinava absoluto sobre seu arsenal de carimbos e formulários, quando chegou o computador e uma reforma administrativa mudou todos os procedimentos. Alguns meses depois foi visto perambulando, errante, por entre os corredores do arquivo morto, carregando um saco de lixo, repleto de carimbos obsoletos.
A história do “homem que carimbava” é um bom exemplo dos profissionais que confundem os meios e os fins. Preocupam-se tanto com o rigor dos procedimentos que os verdadeiros objetivos do seu trabalho ficam em segundo plano.
Há pessoas que vêem na natureza uma demonstração de rígida disciplina, pois o sol nasce regularmente todos os dias, a lua tem suas fases programadas há milênios, os rios sempre correm na direção do mar, tudo parece completamente equilibrado e estável. Mas não é bem assim. O equilíbrio da Criação é algo bem mais complexo e muitas vezes foge ao nosso entendimento. A vida é um permanente estado de mudança e a sobrevivência dos seres vivos depende da capacidade de acompanhar esse movimento.
Havia na Inglaterra, desde muitos séculos, uma grande quantidade de mariposas bancas, que viviam pousadas nos galhos de uma árvore de madeira clara. Com isso elas se protegiam dos predadores, pois sua cor se confundia com a cor das árvores e elas não eram vistas à distância.
Veio a revolução industrial, várias regiões foram ocupadas por máquinas, que eram inicialmente muito poluidoras e despejavam no ar grande quantidade de fuligem e outros elementos tóxicos. As árvores desses lugares, com o tempo, tornaram-se escuras. E assim as mariposas passaram a correr perigo, pois suas asas claras denunciavam sua presença, aos olhos dos animais que gostavam de devorá-las.
O que fizeram as mariposas? Em um progressivo mimetismo, foram adaptando a cor de suas asas às novas condições do meio ambiente. Tornaram-se escuras como as árvore onde pousavam, e assim ficaram mais protegidas.
Acho fantástico esse exemplo, pois o mimetismo das mariposas nos ensina que a disciplina da natureza não é uma atitude rígida, mas sim a capacidade de mudança, de adaptação à realidade em contínua transformação. É conseguir perceber a cada momento o que está acontecendo, sabendo sempre o momento e a melhor maneira de mudar sua rota. Isso vale para empresas, para governos e para nossa vida pessoal.
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(Este texto faz parte do capítulo inédito escrito pelo Prof. Gretz para o “Megalivro Motivacional” organizado por Raúl Candeloro, com a participação de vários autores.)